IAs são alimentadas por dados como mensagens, e-mails, vídeos, fotos, gravações de voz, e geram respostas baseadas em perfis do falecido
Neste 02 de novembro, enquanto muitas famílias visitam cemitérios, acendem velas e renovam suas lembranças, surge uma nova fronteira da tecnologia decidida a reconfigurar a forma como nos relacionamos com a morte: a promessa de contato digital com os mortos — ou seja, o uso da inteligência artificial (IA) para simular a presença, voz ou imagem de pessoas falecidas de forma interativa.
O que está em andamento
Diversas startups — e também centros de pesquisa — já oferecem ou experimentam ferramentas que permitem conversar, em chat de texto ou até vídeo, com “aversões digitais” de pessoas mortas. Na prática, essas IAs são alimentadas por dados como mensagens, e-mails, vídeos, fotos, gravações de voz, e geram respostas baseadas em perfis do falecido.
Exemplos concretos:
- O projeto Project December permitia que o usuário criasse um chatbot simulando alguém falecido, usando prompt, registros textuais e depois pagando para conversar com “ele”.
- A empresa Eternos, com sede nos EUA/Alemanha, desenvolveu um “legacy-platform” que permitiu ao empreendedor Michael Bommer criar uma versão digital da sua voz e “presença” para a família interagir após sua morte anunciada.
- Pesquisadores da University of Cambridge chamam essas entidades de “griefbots” ou “deadbots” — chatbots que simulam linguagem e personalidade de falecidos através de suas pegadas digitais.
O artigo acadêmico “Generative Ghosts: Anticipating Benefits and Risks of AI Afterlives” (2024) já analisa o fenômeno como inevitável: “aguardamos que, em nossas vidas, seja comum pessoas criarem agentes de IA para interagir com entes queridos após a morte”.
Possíveis benefícios e motivações
- Conforto no luto: Pessoas enlutadas relatam que conversar com uma “versão digital” do ente amado oferece alívio — não substitui a perda, mas “preenche um pouco do vazio”.
- Memória viva: A tecnologia pode auxiliar a preservar histórias, valores, memórias familiares — por exemplo, registrar longas entrevistas com uma pessoa ainda viva para depois serem acessadas via avatar digital.
- Legado e sensação de continuidade: Para quem se aproxima da morte, a possibilidade de “deixar algo interativo” para filhos, netos ou entes queridos pode parecer uma forma de estender o impacto da sua vida.
- Inovação tecnológica: Esse campo abre debates interessantes sobre identidade, consciência, memória, e como a tecnologia lida com o que significa “morrer”.
Problemas, impactos negativos e questões éticas
1. Complicação do luto e da aceitação
Embora possa haver conforto, especialistas alertam: usar IAs para “trazer de volta” falecidos pode impedir a aceitação da morte, atrasar o luto ou gerar dependência emocional.
- Um usuário declarou: > “Sei que era IA… mas quando comecei a conversar, senti que estava falando com ele.”
- A psicologia mostra que lidar com a ausência, a ausência real, é parte saudável do processo de luto — substituí-la por simulação pode travar esse ciclo.
2. Autenticidade, consentimento e manipulação
- Quem define se a “voz” digital é realmente a voz da pessoa que se foi? O consentimento prévio é raro. E os perfis gerados podem distorcer ou caricaturar o falecido.
- A Cambridge advertiu sobre “digital hauntings” — se alguém cria uma versão da pessoa que não pediu, ou que continua a gerar respostas indefinidamente, pode causar trauma.
- Há problemas de propriedade dos dados: mensagens, fotos, gravações — quem pode usar para gerar a IA?
3. Mercantilização da morte e vulnerabilidade
- Esse ecossistema já está se tornando mercado: serviços pagos para criar avatares, versões de vídeo ou áudio, manutenção de “presença digital” após a morte.
- Em uma instância, um usuário relatou pagar para ter interação na plataforma: “Eu uso o app 3-4 vezes por semana… ajuda com os ‘e se’s’”.
- Crianças em luto podem ser mais vulneráveis a confundir o que é real e o que é simulado. Um estudo alerta sobre esse risco.
4. Impacto sobre cultura, memória e mortalidade
- A tecnologia redefine o que entendemos por “morrer”. Se alguém pode “continuar” digitalmente, como lidamos com legado, herança, ausência real?
- Há risco de banalizar ou “artificializar” o processo de morte, transformando-o em produto ou entretenimento.
- A linha entre memória honrada e simulação inquietante pode se tornar tênue — para alguns, conversar com “o falecido” vira conforto; para outros, esquecimento e estagnação.
Perguntas que ficam para bem além do Dia de Finados
- Como regulamentar esse tipo de tecnologia? Deve haver padrões sobre consentimento, dados, transparência (“você está falando com IA, não com a pessoa real”)?
- Qual o impacto psicológico a longo prazo, sobretudo em crianças ou pessoas vulneráveis?
- Qual será o papel dos direitos digitais após a morte? Quem detém os dados, e quais usos são permitidos?
- Como as diferentes culturas e religiões vão reagir — em contextos onde a morte tem forte conotação espiritual ou ritualística?
- Como garantir que isso não se transforme em mais uma forma de alienação — substituindo a comunhão verdadeira, os rituais de luto, o acolhimento humano — por uma simulação?
Neste Dia de Finados, ao acendermos as velas e mantermos viva a lembrança dos que partiram, cabe refletir: a tecnologia que promete “reunir” os mortos digitalmente pode parecer bênção — mas também contém armadilhas. A ideia de conversar com quem se foi, reviver memórias, manter ligações interrompidas é tentadora. Mas substitui-se ou complementa-se a dor do luto? E a que custo emocional, ético ou social?
Em última análise: a morte continua sendo parte integrante da vida humana — e talvez o que precisamos não seja tanto extensão digital, mas memória digna, afeto humano, presença no real — e a coragem de deixar ir quando for hora.
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*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.
Fonte: Jovem Pan




