Mesmo com avanços na regularização postal, milhões ainda vivem fora dos sistemas públicos e privados por falta de um dado básico: o reconhecimento formal de onde moram
Pedir uma entrega simples e ouvir “não atendemos sua região” ainda é parte da rotina de milhões de brasileiros. O que poderia ser um contratempo isolado se repete com remédios, documentos, produtos comprados online e, em muitos casos, até com serviços de emergência. O motivo é direto: a ausência de CEP (Código de Endereçamento Postal) coloca o cidadão numa espécie de limbo existencial.
Sem código postal, a pessoa não acessa serviços de saúde, instituições financeiras ou comércio eletrônico. O endereço, que parece um dado técnico, torna-se um filtro de acesso. Um número define quem é localizado e quem continua fora dos sistemas. Imagine um morador de comunidade urbana que precisa realizar uma ressonância pelo sistema do SUS, que exige localização registrada. Como não a tem, usa a de um parente e depois, precisa atravessar a cidade em busca do resultado, pois o exame depende da ajuda de terceiros.
Uma trabalhadora compra uma geladeira usada pela internet. O site informa que não entrega onde ela mora. Ela paga um motoboy e combina a entrega em outro ponto. Não há nota fiscal, nem garantia, pois muitos sites restringem compras em áreas não regularizadas, o que empurra parte da população para maneiras informais de consumo.
Um mecânico tenta formalizar seu serviço enquanto MEI. Sem localização registrada, não consegue se cadastrar, emitir notas ou prestar serviço a empresas, permanecendo à margem da economia formal. A ausência de CEP dificulta o atendimento num incêndio, por exemplo. Quando uma casa pega fogo, a moradora liga aos bombeiros usando uma descrição vaga, tipo “perto do campinho, depois do bar”, uma vez que sua viela não entra no GPS. O socorro pode se atrasar.
Mesmo após a morte, o problema persiste. Sem residência oficial, o atestado pode registrar “local ignorado”, mantendo a invisibilidade cidadã até no fim de sua vida. Essa ausência de referência territorial não é exceção pontual. Antes da conclusão da primeira etapa do programa CEP para Todos, o IBGE estimava que cerca de 870 mil pessoas viviam em áreas com “fragilidade de endereço” — locais sem nome de rua ou numeração definida. A falta de dados básicos impedia o reconhecimento formal dessas regiões e seus moradores.
Em 8 de outubro, o governo federal anunciou a conclusão da primeira fase do programa, que atribuiu códigos postais a 12.348 favelas em 656 cidades. Esses territórios concentram 16,39 milhões de pessoas, o equivalente a 8,1% da população brasileira. Entre os residentes, 43,5% se declaram brancos, 45,3% pardos (miscigenação de diferentes etnias), 10,2% pretos, 0,4% amarelos e 0,6% indígenas. Os dados reforçam o perfil racial diverso desses territórios, mas também evidenciam desigualdades históricas marcadas pela cor e pelo CEP.
De acordo com o IBGE, favelas e comunidades urbanas são territórios criados por estratégias da população visando suprir necessidades de moradia e uso do espaço, diante da ausência de políticas públicas e investimentos privados voltados à garantia do direito à cidade. São localidades construídas onde o Estado não chegou.
A próxima fase do programa prevê a criação de CEPs destinados a ruas, vielas e becos em mais de 300 comunidades, além da instalação de postos dos Correios em 100 localidades. A meta é ampliar o reconhecimento formal desses espaços, que permanecem excluídos dos registros oficiais.
Esta não é uma questão de comodidade, mas de direitos fundamentais. A invisibilidade postal produz um efeito de exclusão: sem CEP, não há comprovante de residência; sem comprovante, não se abre conta bancária; sem conta, não há crédito e, sem ele, não há meios de investir. Sem investimento, a pobreza perpetua-se e o ciclo de desigualdade se aprofunda.
Iniciativas de regularização postal, embora representem avanços significativos, mostram-se insuficientes quando implementadas de forma isolada e descontínua. É necessário transformá-las em política pública contínua, com orçamento, estrutura e prioridade. Enquanto comunidades continuarem fora dos mapas, estaremos naturalizando a exclusão.
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Ter um CEP é mais do que receber correspondência. É a marca de uma existência registrada. É o elo que liga a pessoa ao sistema de direitos. Até que isso seja realidade para todos, a cidade continuará dividida entre aqueles que têm endereço e os que permanecem invisíveis.
*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.
Fonte: Jovem Pan